Cuidado
Notificações revelam cenário assustador de tentativas de suicídio
Desde julho, quando passou a criar fluxo para registro dos casos em Pelotas, os números não param de disparar; até o mês de outubro, quase 200 pessoas já haviam tentado colocar fim à própria vida em 2017
Jô Folha -
A definição de um fluxo para notificação dos casos de suicídio e de tentativas de suicídio em Pelotas revela um cenário que já passa a ser encarado como epidemia. Até o mês de outubro, quase 200 pessoas tentaram colocar fim à própria vida, em 2017. É um salto de dez vezes, se comparado aos 19 registros efetuados em todo o ano de 2016. São dados dos boletins da Vigilância Epidemiológica. E o pior: sabe-se que parte das ocorrências ainda não chega ao conhecimento do Poder Público.
A confirmação de que um jovem cometeu suicídio por enforcamento dentro do Hospital Espírita de Pelotas (HEP), neste mês, amplia o debate e espalha um rastro de questionamentos sobre as medidas que precisam ser adotadas, tanto para qualificar o sistema público de Saúde Mental quanto para barrar os episódios que se tornam cada vez mais comuns em Pelotas. "Os casos estão crescendo assustadoramente. Estamos muito preocupados", admite a chefe do departamento municipal de Saúde Mental, Gicelma Kaster.
Nos últimos quatro meses, desde que definidos fluxos de controle com o Pronto-Socorro de Pelotas (PSP), os números não param de disparar. Até julho, a média de notificações era de uma tentativa de suicídio, por semana, em 2017. Atualmente são de uma a duas situações, por dia - destaca a psicóloga. A grande maioria por intoxicação medicamentosa.
E o alvo das atenções, como no restante do país, volta-se a adolescentes e jovens.
Olhar direcionado à juventude
O período de efervescência, tanto hormonal, quanto de definições para o futuro, coloca os adolescentes naturalmente sob pressão. As cobranças do núcleo social até mesmo quanto a sua sexualidade, a necessidade de escolher por uma carreira ou a expectativa de que ingresse no mercado de trabalho e passe a assumir funções e responsabilidades até então não executadas tornam-se eventos potencialmente estressores - explica o professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Comportamento da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Luciano Souza.
A combinação entre características genéticas, bom suporte familiar, capacidade de frustração e acesso aos serviços de Saúde Mental pode ser a diferença entre conseguir superar as dificuldades ou mergulhar em um quadro onde o risco de suicídio só crescerá. "Quanto mais "favorável" o cenário, menor o risco. Contudo, não há garantias. Pode ser que um determinado evento tenha força suficiente para impulsionar o comportamento, mas é mais raro", explica o doutor em Psicologia. Daí a importância de estar atento.
Confira algumas ações para tentar reverter o cenário
- Capacitação das equipes - Profissionais da Saúde Mental passaram por capacitação, na última semana, para o processo de notificação das tentativas de suicídio ser aprimorado. É um trabalho que vai muito além de possuir estatísticas que se aproximem da realidade.
Ao identificar um novo caso, a Secretaria de Saúde pode - e deve - ir em busca de familiares para conhecer o histórico do paciente, verificar se ele já é atendido pela rede de Saúde Mental e, então, definir estratégias de ação para evitar que o quadro evolua e transforme-se em morte.
- Ampliação das equipes dos Caps - Mais profissionais precisarão ser nomeados para atender à demanda em alta nos oito Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de Pelotas; em especial o Caps-I, direcionado à infância e à adolescência. Ainda não há, entretanto, levantamento completo de quantos trabalhadores precisarão ser chamados.
- Palestras na rede escolar - Um ciclo de palestras deve começar a percorrer, em uma primeira fase, as escolas da rede municipal em 2018. É uma das apostas para abrir canal de comunicação mais direto com crianças e jovens.
- Valorização da vida - Eventos devem ser realizados pela Secretaria de Saúde, ao longo do próximo ano, com o lema de Valorização da Vida. É mais uma das estratégias de prevenção.
O episódio no Hospital Espírita
A Secretaria de Saúde de Pelotas aguarda o resultado da perícia envolvendo a morte de um paciente do Hospital Espírita para obter mais informações sobre o suicídio do jovem no começo deste mês. A secretária de Saúde, Ana Costa, preferiu não se pronunciar sobre o caso. Em declaração rápida, falou sobre a importância de serem identificados quais tipos de ações a instituição teria tomado para evitar a ocorrência.
O Diário Popular tentou contato com a direção técnica do Hospital Espírita, mas não houve qualquer possibilidade de esclarecimentos. O posicionamento foi expresso por e-mail, através de nota; a mesma encaminhada ao Conselho Municipal de Saúde. Confira a íntegra:
O Hospital Espírita de Pelotas, em resposta ao episódio, informa que o paciente internou em 30/11/2017 por apresentar-se psicótico, interpretando tudo na sua volta contra si. Medicado adequadamente com anti-psicótico e ansiolítico, colocado em observação pelos riscos que apresentava. No dia seguinte ao ir ao banheiro cometeu suicídio por enforcamento. Plantão médico atendeu a ocorrência, isolou a área e chamou o Instituto Médico Legal e a Polícia Civil para perícia e recolhimento do corpo.
A equipe de reportagem também tentou contato com a família do jovem, mas eles preferiram não se manifestar.
Depois do desespero, o cuidado diário
A cabeleireira recebe o DP em casa, conversa, dá detalhes e resume: o sentimento é de desespero. O primeiro susto veio em fevereiro de 2017, quando descobriu que a primogênita, hoje com 14 anos, se cortava. As roupas de manga comprida, mesmo em dia de altas temperaturas, passavam a fazer sentido. E se iniciavam também a correria para a Unidade Básica de Saúde (UBS) e a busca por tratamento especializado.
Foi o que começou a ocorrer só em julho, quando uma crise se transformou em acolhimento no Caps-I. O pior, entretanto, ainda estava por vir. Os dias 11 de agosto e 5 de setembro foram marcados por tentativas de suicídio por uso abusivo de medicamentos controlados e antecederam duas internações: uma de sete dias no Hospital Espírita e outra de 24 dias em ala de Saúde Mental da Santa Casa de Misericórdia de São Lourenço do Sul.
"No início de tudo eu ficava perdida, pensando onde estava a minha culpa. Hoje eu sei que a minha filha tem uma doença para carregar. É difícil, mas o primeiro passo é aceitar", ensina a mãe, de 35 anos. O diagnóstico da adolescente ainda não está fechado, mas as hipóteses são de esquizofrenia e de bipolaridade. Um quadro que as une em busca de informações.
Juntas, elas frequentam o Caps-I e garimpam conhecimento que as ajude a lidar com dificuldades e alucinações e a se protegerem do bombardeio de preconceitos. O segredo é saberem identificar sutilezas de quando a jovem não está bem, para que possam correr por atendimento a tempo. "O que eu, realmente, sinto falta é que ela pudesse receber acompanhamento individual com psicólogo todas as semanas", admite a mãe.
"Minha filha tem uma doença para carregar. É preciso aceitar", ensina a mãe, de 35 anos (Foto: Jô Folha)
Carregando matéria
Conteúdo exclusivo!
Somente assinantes podem visualizar este conteúdo
clique aqui para verificar os planos disponíveis
Já sou assinante
Deixe seu comentário